https://pontosj.pt/opiniao/professores-para-que/
Maria
Helena Damião
8
Junho 2021
OPINIÃO EDUCAÇÃO
Professores para quê?
Face
à manifesta desvalorização da escola, que redunda numa séria
tentativa de a dissolver com tudo o que lhe dá forma e sentido,
justifica-se plenamente a pergunta que
o filósofo Georges Gusdorf usou como título do seu
livro de 1963.
“Não
é que nós queremos nos livrar dos professores, de maneira alguma. É
criar uma relação diferente entre alunos e professores, uma espécie
de parceria.”
D. Albury, 2015.[1]
“Aos
professores-pessoas caberá um trabalho de bastidores como ajustar
os equipamentos, gerir problemas de disciplina e dar apoio
pontual a alunos.”
A. Seldon, 2018.[2]
“Um
corpo docente reduzido, singular e bem treinado continua a projetar
atividades de aprendizagem que podem ser implementadas e
monitorizadas por robôs educacionais e outros funcionários (…) ou
diretamente por software educacional.”
OCDE, 2021.[3]
Nestas
declarações – respetivamente, do diretor de uma empresa social
que tem atividades educativas, de um académico das áreas da
história e da educação, e de uma organização supranacional com
enorme protagonismo na educação – percebe-se uma convergência em
vários aspetos: para fazer funcionar os sistemas de ensino, que se
querem em rápida mudança, continuam a ser precisos professores, mas
em menor número; diversas funções destes profissionais são
atribuídas a outros não credenciados e a aparelhos tecnológicos;
aos professores cabem sobretudo tarefas de gestão das condições de
aprendizagem, sendo a sua relação com os alunos transformada.
Como
compreender, então, as seguintes declarações, que se afiguram de
interpretação contrária?
“Os
professores desempenham um papel central no acesso universal a uma
educação de alta qualidade e equitativa para todos (…) são o
fator que mais influencia o desempenho e a aprendizagem dos alunos.”
UNESCO, 2020[4].
“Os
professores são o fator mais importante na escola quando se trata de
aprendizagem.”
OCDE/UNESCO, 2021.[5]
Para
fazer funcionar os sistemas de ensino, que se querem em rápida
mudança, continuam a ser precisos professores, mas em menor número;
diversas funções destes profissionais são atribuídas a outros não
credenciados e a aparelhos tecnológicos; aos professores cabem
sobretudo tarefas de gestão das condições de aprendizagem, sendo
a sua relação com os alunos transformada.
As
dúvidas adensam-se ao olhar para o “inevitável” projeto global
de transição digital:
“As
máquinas ‘inteligentes’, escrupulosamente programadas, serão
inspiradoras, não terão quaisquer falhas nos conteúdos a ensinar,
usarão as abordagens pedagógicas eficazes, desafiarão os
alunos, serão pacientes com eles e administrar-lhes-ão o
reforço no momento certo. Também se adaptarão às suas
particularidades e proporcionar-lhes-ão um progresso
individualizado, seguindo o seu ritmo de aprendizagem. Serão elas
que abrirão as portas do conhecimento às novas gerações”.
A. Seldon, 2017 [6].
Todas
estas citações são posteriores a 2015, ano em que a ONU publicou a
“Agenda 2030”, documento que a OCDE diz ter tomado como base para
construir o “Modelo Bússola de Aprendizagem”, que apresenta como
“humanista” e a que tem dado redobrado impulso desde 2020.
Esta
organização alega urgência em transformar a educação para se
alcançar o há muito almejado “bem-estar” pessoal e social.
Tendo declarado a pandemia da Covid-19 como a “grande oportunidade”
para tanto, entendeu ser a “disrupção” o caminho a seguir e a
“ubiquidade” a abordagem a privilegiar. Reafirma que, com as
tecnologias digitais, a informação está ao alcance de todos, em
todo o lado, a todo o momento, pelo que a aprendizagem de tipo
escolar, antes confinada à escola, dispensa-a em numerosas
situações, ficando, assim, dispensada a interação direta
professor-alunos. Em concreto, colocando a tónica na aprendizagem,
alia à vertente formal as vertentes informal e não formal, podendo
o contexto ser escolar ou não escolar. Os alunos solicitarão apoio
de qualquer agente – professor ou não – que se lhe afigure ser
uma ajuda para alcançar as “competências” inscritas na sua
“bússola” personalizada. Quais navegantes, terão nesta
“metáfora” a ferramenta ideal para encontrar o seu caminho
próprio num mundo cada vez mais complexo, incerto e volátil.
Face à
manifesta desvalorização da escola, que redunda numa séria
tentativa de a dissolver com tudo o que lhe dá forma e sentido,
justifica-se plenamente a pergunta que o filósofo francês Georges
Gusdorf (1912-2000) usou como título do seu livro de 1963:
“professores para quê?”[7]. O essencial da sua resposta, tão
extensa quão profunda, encontra-se no Capítulo 1: O ensino, o saber
e o reconhecimento (páginas 13 a 46).
Contestando
os desígnios de uma “pedagogia de trazer por casa”, cujo centro
é a tecnocracia da eficácia, marca dos nossos tempos, relembra que
toda a educação “prepara para a existência”. Este princípio
tem de estar na escola, “lugar privilegiado de civilização”,
que poderá levar cada aluno a “alargar e desenvolver o espaço
mental”.
Por
isso, “o ensino é sempre mais do que o ensino (…) em cada
situação particular, ultrapassa em muito os limites dessa situação,
para pôr em causa a existência pessoal no seu conjunto”.
Por isso,
“o ensino é sempre mais do que o ensino (…) em cada situação
particular, ultrapassa em muito os limites dessa situação, para pôr
em causa a existência pessoal no seu conjunto”. Longe de estar
cientificamente explicado e de ser operacionalizado fora do humano,
há tanto nele de conhecido como de desconhecido, de possibilidade
como de impossibilidade: “o mistério pedagógico nimba o
nascimento de um espírito, a vinda de um espírito ao mundo e a si
próprio”; “se cada vida a si mesma se pertence, como transmitir
algo de uma existência para outra?”.
Neste
reconhecimento, o filósofo francês recusa a redução do professor
a “uma espécie de figurante. Na melhor das hipóteses, um
medianeiro”. Ele “sabe-se e quer-se diferente de todos os outros
que perseguem interesses financeiros e vantagens pessoais”, pois
cabe-lhe dar “forma humana” ao conhecimento, procurando “libertar
em cada um o pleno exercício da inteligência. Na “odisseia de
cada consciência”, o professor potencia o “diálogo aventuroso”:
ensina alguma coisa para os alunos aprenderem alguma coisa. A “graça
do encontro” escolar não acontece em mais lado nenhum nem em
nenhuma outra relação, mas não é esta consciência que a torna
segura:
“Pode
substituir-se o professor por um livro, um posto radiofónico, um
megafone, e não faltam tentativas nesse sentido. No limite, todas as
crianças (…) podiam receber, em casa, o ensino de um só e único
professor (…). Pode ver-se a enorme vantagem que este sistema
ofereceria do ponto de vista financeiro: acabavam-se as escolas, as
turmas, os milhares de funcionários [bastaria] uma pequena equipe de
instrutores”.
Gusdorf
discute nos restantes capítulos esta afirmação que, apesar das
suas quase seis décadas, é próxima daquelas com que abri o texto.
Então, responde à pergunta que formulou: precisamos de professores
porque eles são “os guardiões da esperança humana”.
Face à
sistemática e sofisticada sedução discursiva que faz desviar esta
consciência, insistir nela é voltar à essência da profissão.
[1]
Albury, D. (2015, 22 de Setembro). Precisamos
ajudar os professores a mudar de papel. Carta Educação
[2]
Seldon, A. (2018). The fourth education revolution: How artificial
intelligence is changing the face of education. Buckingham: The
University Press.
[3] OCDE (2021). Back
to the future of education: Four OECD scenarios for
schooling )
UNESCO/International
Task Force on Teachers for Education 2030 (2020). Guia
para o desenvolvimento de políticas de docência
[5]
OCDE/UNESCO (2021). International
Task For Teacher Education.
[6]
Seldon, A. (2017). Robots
will replace teachers in the next ten years
[7]
Gusdorf, G. (1968). Professores para quê? Para uma pedagogia da
pedagogia. Lisboa: Livraria Morais Editora.
* Os
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